“A força do Direito deve prevalecer em detrimento do direito da força”, adverte Flávia Piovesan em assembleia da FLAM

2 de junho de 2022

“A força do Direito deve prevalecer em detrimento do direito da força”, advertiu a jurista, professora e ex-membro da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), Flávia Piovesan, quanto à intensificação de ataques à independência do Poder Judiciário na América Latina. A afirmação foi feita durante aula magna proferida a cerca de 60 magistrados de 20 países, que integrou a programação da 69ª Assembleia Anual da FLAM (Federação Latino-americana de Magistrados), realizada entre os dias 30 e 31 de maio, na sede social da Apamagis (Associação Paulista de Magistrados), em São Paulo. A ocasião também contou com a reunião do grupo Ibero-americano da União Internacional de Magistrados-UIM.

A convite do desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, Walter Barone, presidente de ambas instituições e vice-presidente da Apamagis, Piovesan compartilhou a experiência de seu mandato de quatro anos na CIDH, quando teve a oportunidade de conhecer a fundo a região, suas fortalezas e debilidades. “Sou uma admiradora de cada um e cada uma de vocês pela essencialidade da independência do Poder Judiciário. Em um Estado de Direito, o poder de uma caneta é mais importante e mais poderoso que tanques na rua. E o Poder Judiciário institucionaliza o poder do argumento, que é um indicador do grau da civilização humana. Então, se estou aqui com toda emoção e gratidão é, sobretudo, pelo reconhecimento da importância da função jurisdicional”, afirmou na abertura de sua exposição agradecendo à FLAM, à UIM e à AMB, co-organizadora do evento.

“O Poder Judiciário institucionaliza o poder do argumento, que é um indicador do grau da civilização humana”, afirmou Flavia Piovesan na abertura de sua exposição agradecendo à FLAM, à UIM e à AMB | Foto: Alexandre Boiczar

 

Intitulada “Protección a la independencia Judicial y Sistema Interamericano”, a aula magna buscou traçar um cenário considerando o impacto da pandemia de covid-19 nas Américas a partir do enfoque de direitos humanos; o alcance dos sistemas interamericanos em matéria de independência judicial; e os principais desafios para fortalecer a independência judicial na região.

Recorrendo às bases sob as quais as sociedades latino-americanas foram forjadas, Piovesan destacou três desafios estruturais, acentuados pela pandemia: a profunda desigualdade social, o padrão de discriminação estruturante e histórico, e o déficit democrático na região. Segundo dados da Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), 34,7% das populações da região vivem na pobreza, enquanto 13,8% vivem na pobreza extrema. Antes da pandemia, os percentuais eram de 30% e 11%, respectivamente.

Apesar do agravamento das condições de vulnerabilidade social em razão da emergência de saúde pública global, indicadores sociais na região demonstram, empiricamente, um padrão histórico estruturante e sistemático de discriminação, exclusão e violência que afeta de forma desproporcional afrodescendentes e povos indígenas. Piovesan, que na CIDH foi relatora para os Estados Unidos, apresentou dados da letalidade de covid-19 no país: quatro vezes maior entre afrodescendentes em comparação com a população branca. “O vírus não é discriminatório, mas seu impacto, sim”, resumiu, parafraseando Michelle Bachelet, alta comissária dos Direitos Humanos da ONU e ex-presidente do Chile.

Para Piovesan, a pandemia favoreceu as arbitrariedades autocráticas acentuando o declínio da democracia no âmbito global, levando ao que classificou como “onda autocratizante”. Dados da pesquisa de opinião pública Latinobarômetro indicam que a democracia é o regime preferido de apenas 48%. Com relação à confiabilidade nas instituições, na região, as igrejas aparecem em primeiro lugar, com 63% de apoio; forças armadas, com 44%; o Poder Judiciário, com 24%; o Poder Executivo, com 22%; o Congresso, com 21%; e partidos políticos, com 13%.  A indiferença à política também é corroborada pela pesquisa do instituto Pew Research Center, a qual revelou que as alternativas não democráticas têm o endosso de 23% da população no Brasil, 27% no México e 18% na Argentina.

Após o panorama de desafios históricos e estruturais na região, Piovesan compartilhou experiências durante o mandato na CIDH na avaliação de situações de grave violação aos princípios da separação de Poderes, inamovibilidade de magistrados e independência do Poder Judiciário.

Piovesan compartilhou experiências durante o mandato na CIDH na avaliação de situações de grave violação aos princípios da separação de Poderes, inamovibilidade de magistrados e independência do Poder Judiciário | Foto: Alexandre Boiczar

 

Entre os casos avaliados pela Comissão, estão o da Venezuela, onde mais de 80% dos juízes são provisórios, da Guatemala, em que juízes foram ameaçados, incluindo o da juíza Erika Aifán, que renunciou ao cargo e exilou-se nos Estados Unidos após sofrer ameaças, e os de El Salvador, Equador e República Dominicana, onde houve a destituição de magistrados sem respeito ao devido processo legal. “Como comissária fiquei muito surpresa porque não havia uma semana em que a comissão não avaliava medidas cautelares em caso de urgência ou gravidade de danos irreparáveis”, compartilhou.

Para a análise dos casos em tela, Piovesan destacou a aplicação dos artigos 8 (garantias judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. “No direito interamericano, toda pessoa deve ser ouvida com as devidas garantias, em um prazo razoável, por um juiz e tribunal competente, independente e imparcial. E toda pessoa, em um Estado de Direito tem direito a um recurso simples, rápido, efetivo perante os juízes e tribunais competentes. Aqui temos três dimensões da independência judicial: direito ao livre acesso à proteção judicial, garantia da independência judicial e direito à prestação jurisdicional efetiva na hipótese da violação a direitos humanos”.

Por fim, como resposta ao desafio de fortalecer a independência judicial na região, Piovesan ressaltou a necessidade de dar visibilidade e denunciar ataques de regimes populistas autoritários. Ela ainda lembrou o trabalho dos professores de Harvard Daniel Ziblatt e Steven Levitsky no livro Como as Democracias Morrem, traduzido para 21 países, e que apresenta, em sua opinião, uma pesquisa sólida com uma base comparativa consistente sobre regimes autoritários em diferentes regiões e épocas. Um dos indicadores para governos populistas autoritários apresentado no livro é o ataque à independência judicial, à liberdade acadêmica, à liberdade de expressão e de imprensa e ao pensamento crítico.

“É muito importante ter em mente que a independência do Poder Judiciário é um fator que desestabiliza os populistas autoritários. Tenho total respeito e admiração pelo Judiciário da região e do Brasil, que salvou vidas, que fez com que a ciência prevalecesse e não o obscurantismo, que garantiu a liberdade de imprensa, de expressão. É justamente essa ideia [que precisamos ter em mente] que sem a independência judicial não temos a proteção dos direitos humanos, não há democracia e não há Estado de Direito. Ou seja, o Poder Judiciário é, claro, uma condição básica, essencial e indispensável para a democracia e direitos humanos”, concluiu sob aplausos.

Cerca de 60 magistrados de 20 países acompanharam a aula magna de Flavia Piovesan, parte da programação da 69ª Assembleia Anual da FLAM | Foto: Alexandre Boiczar

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