Artigo: D. Quixote era louco?

10 de março de 2022

Paulo Eduardo Razuk

Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo

A obra de Cervantes informa que, após anos de leitura de romances de cavalaria, o personagem teria enlouquecido, resolvendo tornar-se, fora de época, um cavaleiro andante, que estava fazendo falta ao mundo, para desfazer os agravos, endireitar os tortos, emendar as injustiças, reduzir os abusos e saldar as dívidas (capítulo II). Em suma, um visionário, que se atribuiu a missão de consertar o mundo.

O caso parece ser de esquizofrenia paranóide, marcada por idéias delirantes e alucinações, sendo o portador capaz de ser simultaneamente a antiga e a nova pessoa, e viver ao mesmo tempo em seu mundo patológico e no mundo real .

A ação passa-se na Mancha, no início do século XVII, em que reinava na Espanha a Casa de Habsburgo, lá conhecida como a dos Áustrias. Era uma monarquia absoluta, com forte influência da Igreja Católica. A sociedade espanhola da época era rigidamente dividida em classes: o clero, a nobreza, a burguesia e o povo miúdo.

D. Quixote era cristão velho, sem mistura de sangue. Era um fidalgo letrado, pertencente à pequena nobreza, com uma propriedade rural cuja renda lhe garantia o sustento, sem que precisasse trabalhar. No traço de Gustave Doré, era um aristocrata, alto e magro, que montava um corcel, o Rocinante. Ao contrário, seu escudeiro, Sancho Pança, era um lavrador baixo e gordo, analfabeto, movendo-se sobre um jumento.

D. Quixote era cônscio dessa desigualdade, reputando-a natural. Não se insurgia contra a monarquia, a Igreja ou a hierarquia social. Os ventos do liberalismo, a reclamar a igualdade das pessoas, só viriam a soprar no século seguinte, já na monarquia da Casa de Bourbon, ainda hoje reinante na Espanha. Então D. Quixote está bem situado no espaço e no tempo, o que permite aferir a sua normalidade.

Isso muda durante as aventuras, em que investe contra moinhos de vento, tomando-os por gigantes. Ou quando intervém em favor de galeotes, reputando-os inocentes, em afronta à justiça real. Ou quando dissolve uma procissão de frades, para liberar o andor, que lhe parecia uma dama subjugada. Em tais casos, sobressai uma visão distorcida da realidade, a pautar as suas ações, que então careceriam de mérito, por decorrerem de alienação mental.
Para superar o problema, há quem atribua a D. Quixote a simulação da loucura, para justificar as suas ações. Mas, tal malícia não casa com a pureza de caráter do personagem.

Porém, existe uma fronteira nítida entre a normalidade e a alienação mental? Machado de Assis, em sua novela “O Alienista”, mostra que tal limite não é objetivo, tanto que vai variando ao longo da narrativa, ao critério movediço do Dr. Simão Bacamarte, quem deveria ou não ser encerrado na Casa Verde, o hospício de Itaguaí.

Primeiro, quem apresentava desvios de personalidade e não seguia um padrão, depois quem mantinha a regularidade nas ações e possuía firmeza de caráter. Por fim, como ninguém tinha uma personalidade perfeita, excepto ele próprio, o alienista conclui ser o único anormal e decide trancar-se sozinho na Casa Verde.

A questão não é bizantina. Se alienado, D. Quixote não seria responsável por suas ações no mundo real, nem seus méritos lhe poderiam ser atribuídos. Contudo, mesmo que privado de lucidez, em certos momentos, D. Quixote jamais toma decisões moralmente inaceitáveis, mantendo sempre a sua honestidade.

Louco ou não, quem pode julgar?

 

Referências:
Miguel de Cervantes, D. Quixote de la Mancha, tradução de Eugênio Amado, Editora Itatiaia, Belo Horizonte, 1984.
Machado de Assis, O Alienista, in Papéis Avulsos, Jackson Editores, S. Paulo, 1946.
Odon Ramos Maranhão, Curso Básico de Medicina Legal, 5ª edição, Malheiros Editores, S. Paulo, 1992.

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